quinta-feira, 16 de outubro de 2008

**O Grande Dia de Krentz - CEBolso nº 02

Aqui se encerra o conteúdo da CEBolso nº 02 com um pequeno conto medieval de minha autoria:

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O Grande Dia de Krentz
Ricardo Santos

Ontem ele me disse que seria algo grandioso. Como de costume, sua barba branca tremia enquanto sua boca abria e fechava para expelir as palavras proferidas com tanto ardor. Eu pude sentir, enquanto ouvia, a raiva que permeava suas falas. Eu pude sentir o desejo de vingança que exalava em seu bafo podre de hidromel azedo. Prenunciava as mortes com tanta alegria que não parecia ser um homem que outrora dedicara-se inteiramente a Deus. Se por um lado estava tão contente que não conseguia conter-se, e por isso precisava da ajuda do álcool para digerir suas emoções, eu tremia de medo, pois o dia seguinte seria o dia de minha prova, o dia em que todos saberiam se eu era digno de ostentar o título que conquistara anos atrás, quando a ameaça fora destruída pela lâmina de minha espada.

Assim que o dia raiou hoje, a primeira coisa que fiz foi tomar o leite fresco que Imelda acabara de tirar de nossa vaca, tão magra e desnutrida que pude sentir o leite desencorpado descendo na garganta feito água. Depois fui ao nosso pequeno santuário rezar aos deuses para que nos dessem forças nesse dia tão sombrio.

E agora aqui estou, a caminho do campo de batalha, longe de todos os outros soldados, sem coragem de abrir a boca para dizer uma palavra de consolo aos mais jovens, que vejo me olharem curiosos e admirados, como se minha presença fosse garantia de vitória certa. O peso nas minhas costas é imenso. Tantas vidas esvair-se-ão hoje, e minha vontade é de poder salvar todas, mas sei que as baixas estão inexoravelmente ligadas às guerras. É a lei da natureza.

-X-

O suor escorre de meus cabelos trançados. Eu torço para que ele não atinja meus olhos e me cegue, enquanto giro a espada entre meus inimigos, dilacerando seus corpos, banhando o campo de sangue. Meus machucados são irrelevantes. Tenho que continuar matando, sem parar. Uma dúzia deles tenta me acertar enquanto manejo a incansável lâmina. Os corpos tombam, eu continuo. Sinto o peso de muitos olhares sobre mim. Quando grito, minha força parece dobrar, fazendo meus inimigos recuarem de medo, como se minha voz pudesse arrebatá-los, jogá-los para longe. Meus braços com as veias saltadas cansam-se, mas não param.

-X-

Assim que sento no chão, ao lado de tantos corpos, finalmente vejo o que me fizeram. Vejo um corte gigantesco em minha perna, vejo minha barriga com linhas de sangue que se esvaem de buracos de estocadas rápidas e grotescas.

Vejo logo que não tenho muito tempo. Os garotos olham-me com cara de espanto. Imelda vem correndo de longe, minha vista embaça, parece que ela nunca vai chegar. Eu fecho os olhos por um instante, pensando no alívio de ter feito o que queria. Ganhamos a guerra. Abro os olhos. Imelda chega, chorando, me abraça, deita minha cabeça sobre seu colo. No mar de sangue que nos envolta. É aqui mesmo que me vou. Sobre os meus troféus, sobre os espólios de guerra. Sobre a grama vermelha. Sobre os campos dos deuses. Sob os deuses. Me recebam.


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Em breve: a capa da 7ª edição!

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