terça-feira, 14 de outubro de 2008

**Lobo - CEBolso nº 02

Continuando a postagem de contos da 2ª edição da CEBolso, aqui vai o segundo:

Lobo
Alvaro Souza

O whisky puro flamejava garganta abaixo. Espremia por um instante os olhos vermelhos e ardidos na hora de engolir. Ao abri-los novamente, tomava consciência de si e da realidade ao seu redor. Ainda não era o bastante. Ainda podia sentir.

- Me dá mais um – pedia, a voz um rosnado arrastado que já traía a embriaguez.

- Ei, Thom, será que você já não bebeu demais? – o gordo dono do bar tentava, como de costume, encerrar a bebedeira do velho enquanto ele ainda era capaz de caminhar para casa.

- Hã?!... – o homem não entendeu de imediato, parecia surpreso e confuso por falarem com ele - ...não enche não, Paulão, serve logo e não reclama, que é a minha pensão que te sustenta! – esbravejou, depois de uma pausa para se orientar. O velho minguado e raquítico, uma figura inofensiva, agigantava-se sob o efeito da bebida – Põe logo essa merda dessa dose!

Querendo que ele parasse de beber! Um sujeitinho que nunca teve a pólvora negra ou o sangue viscoso nas mãos, que ficou gordo na paz proporcionada por homens de verdade como ele! – ...querendo que eu pare de beber... – pôde-se ouvi-lo balbuciar. Virou o copo tão logo o barman terminou de enchê-lo. Seus cabelos grisalhos e desgrenhados eram sebosos, como se não tomasse banho há dias; a barba acinzentada por fazer dava ao rosto magro e ossudo um aspecto ainda mais macilento. Nunca fora muito alto, e agora parecia ter encolhido, curvado e artrítico. Sentado lá, ganindo resmungos para si mesmo, babando ao virar um copo atrás do outro, estremecendo violentamente após cada golada, Thom era a imagem de um cão em agonia ensandecida.

Não tinha família nem amigos na cidade. Sabiam que ele era um veterano do Exército Integrado, mas pouco mais do que isso. Normalmente, tão logo ficava bêbado, iniciava suas bravatas, histórias confusas e embaralhadas que contava no balcão, para ninguém em particular, das quais todos riam, os devaneios de um velho louco. Pessoa alguma acreditava que ele tivesse feito aquelas coisas. Não davam nada por ele.

Na última semana, no entanto, seu comportamento mudara; andava pelas ruas como um vira-lata neurótico, sobressaltava-se com qualquer barulho, assustava-se quando alguém se aproximava, como se estivesse num transe, num mundo só seu, do qual a realidade vinha tirá-lo momentaneamente, um mundo assombrado e angustiante. A bebida não tinha o mesmo efeito, a embriaguez não vinha mais expansiva e relaxante. Pelo contrário, bebia quieto num canto do balcão, murmurando consigo mesmo e tremendo, o álcool no qual tentava refugiar-se parecendo confiná-lo cada vez mais à companhia dos demônios dos quais queria escapar.

- ENTÃO ATIRA VOCÊ!! – a explosão repentina assustou a meia dúzia de outras pessoas espalhadas pelo bar. Imediatamente olhou à sua volta, surpreendido pela presença delas ali; varreu o recinto com o olhar, como se o observasse pela primeira vez, até que pousou os olhos esbugalhados no copo vazio em sua mão, e já ia estendê-lo para Paulão, quando este perdeu a paciência:

- Já chega!!! Você não vai beber nem mais uma gota, seu velho desgraçado!!! Perturbando o meu bar!!! Vai-te embora, bêbado nojento!!! – e ia levando a garrafa, que estava próxima de onde Thom sentava, de volta para a prateleira.

- NÃO!! EU QUERO MAIS!!! – o velho lançou-se à frente, tentando agarrar o braço gordo por cima do balcão, meio que atirando-se por sobre o móvel – VOCÊ NÃO É NINGUÉM PRA ME IMPEDIR SEU LIXO PARASITA DA RECONSTRUÇÃO!!!! – lutava furiosamente com o homem muitas vezes maior e mais pesado, a saliva voando com os rosnados ameaçadores, batendo os dentes como que ensaiando uma mordida. Um freguês aproximou-se por trás, segurando-o pelo braço, e foi repelido por uma cotovelada no rosto, um acidente no meio da confusão, todos pensaram na hora, mas ainda assim um golpe surpreendentemente forte e que lhe partiu o nariz, lançando-o de bunda ao chão.

O braço recém-libertado tomou a garrafa dos dedos robustos do outro lado do balcão, um movimento rápido e vigoroso, que deixou perplexo o dono do bar. Thom afastou-se de um salto do balcão, aprumou as costas contra a parede, a alguns metros da porta, todo ameaça, preparado para se defender de um segundo ataque, uma fera acuada pronta para a orgia de sangue da luta até a morte. Um taco de alumínio surgiu por detrás do balcão, nas mãos do gigante obeso, que arfava. Os demais clientes, em pé, formavam um semicírculo hesitante, receoso de avançar sobre o velho, não mais tão inofensivo assim.

- Eu já chamei a polícia! – a voz do rapaz vinha alta e desafinada dos fundos do bar; o filho de Paulão, que limpava os banheiros quando a confusão começou, trazia um celular, que agitava na mão a alguns centímetros do rosto. Todos pareceram parar por um instante.

- Pega essa merda dessa garrafa, enfia tua pensão no cú e vai logo embora daqui!!! – berrou seu pai na direção do velho, que rosnava eriçado, dentes à mostra – desaparece e nunca mais volta, seu vagabundo! Se achando tão melhor que os outros porque descascava batata e limpava privada na guerra!!! VAI!!!

BLAM!!! – o taco golpeou violentamente o banco redondo em que Thom estivera sentado, e os homens assistindo puderam ver até a alma do velho estremecer.

- AAAARRRRGGHHHHH – o urro parecia vindo de outra dimensão, reverberou por todo o estabelecimento, violento, desesperado, todos os presentes encolhendo-se diante dele. Os olhos esbugalhados eram aterrorizantes, os dentes amarelados, presas ameaçadoras. Com a garrafa firmemente abraçada junto ao peito, sob o braço direito, tateou com a mão esquerda, enquanto recuava lentamente de costas, até encontrar a maçaneta. Abriu a porta e saiu rapidamente para a calçada, não dando as costas em nenhum momento para os inimigos, que o observavam boquiabertos, sem ação.

Lá fora, o sol do meio da tarde apunhalou seus olhos com uma dor lancinante. A garrafa ainda apertada sob o braço, caminhou dois ou três passos rua abaixo, afastando-se da porta do bar em sentido contrário ao dos carros que passavam. Parou, sem rumo, não sabia aonde ir, não tinha nem certeza quanto ao que acabara de acontecer. Deu meia-volta, mas não saiu do lugar; olhou para o outro lado da rua, mas não reconheceu nada de familiar na cidade em que morava havia anos. A confusão mental intensificara-se com a exaltação de momentos atrás. Apertou os olhos e chacoalhou a cabeça, tentando clareá-la.

- Ei, senhor, fique parado!! – o grito trouxe-o de volta. A viatura acabara de encostar bem atrás de dois carros estacionados junto ao meio-fio, os dois policiais caminhavam cautelosamente em sua direção. Exasperado pela interpelação áspera do guarda, por um instante pareceu apavorado. As mãos tremiam, os olhos piscavam loucamente enquanto olhava, aturdido, ao seu redor. Os homens aproximavam-se devagar. A arma na cintura. A farda azul. Aquela farda não era a sua. Feições ameaçadoras.

- Nós só vamos levá-lo daqui, e o senhor não vai dar trabalho, certo?! – as armas. A farda. Que não era a sua.

O desespero e a agitação deram lugar a uma serenidade estática, como se uma chave em seu cérebro tivesse fechado um circuito há muito em desuso. Tolos. E um par de soldadinhos de merda desses, recém saídos das fraldas, lá seria capaz de neutralizá-lo! Os melhores do mundo já tentaram, teve vontade de dizer, os melhores do mundo! E sobrevivera a todos eles! Todos! Esses bostinhas achavam que o tinham encurralado? Desarmado e sozinho no meio da rua? Deixaria os desgraçadozinhos tentarem!

A coluna ereta parecia ter recobrado a estatura de outrora. Cabeça erguida, respiração compassada, a mão esquerda baixada ao lado do corpo, a direita segurando firme a garrafa. O olhar sinistro oscilava de um soldado para o outro, encarando-os nos olhos, o modo correto de se fazer. Não era mais o animal encurralado em desespero, era o caçador ardiloso, prestes a se abater sobre a presa indefesa e em desvantagem. Toda essa repentina frieza produzia o efeito esperado de intimidar aqueles rapazes, que não compreendiam como um velho bêbado podia fazer o suor gelado brotar de seus poros daquele jeito. Confusão já não mais existia em sua mente, que operava como a máquina perfeitamente azeitada, que o treinamento projetou e a violência teve anos para aperfeiçoar.

A calçada era razoavelmente larga, mas os três veículos enfileirados em frente ao bar transformavam-na em um corredor perfeito para se inverter a vantagem numérica de seus oponentes. Estava alinhado com o pára-choque dianteiro do primeiro carro da fila; o policial que gritara com ele aproximava-se pelo centro da calçada, e já passava da roda traseira do carro do meio. Seu colega seguira alguns metros atrás, parando na linha do pára-choque dianteiro da viatura, só que mais à esquerda de Thom, rente à parede de um edifício. Parecia ter escolhido aquela posição para dar cobertura ao parceiro; sua mão abriu lentamente o fecho do coldre e puxou metade da pistola para fora, mantendo-a naquela posição. Faça o melhor que puder, filho. Aquilo era o máximo que podiam mandar atrás dele?

As jaquetas estufadas denunciavam os coletes à prova de balas. Bom. Como o lobo que prepara a emboscada, Thom recuou sutilmente para a esquerda, e o homem da frente correspondeu da forma esperada, desviando-se um pouco para a sua direita e continuando a se aproximar, seguro de que dera ao companheiro uma linha de tiro limpa. O velho permanecia estático, pareceria resignado. Esperar o momento certo, calcular a distância com precisão, tudo isso fazia parte de suas funções mais primárias. O guarda estava bem próximo agora, percorria os últimos metros; levou a mão direita à algema, pendurada no cinto ao lado da arma, sobre a perna direita.

E fechou-se a armadilha, a alcatéia de um homem só cravando os dentes na garganta de sua vítima, aguardando o jorro morno da vida que se esvairia em vermelho. Thom soltou a garrafa, dando um passo impetuoso com o pé direito em diagonal, rápido como um raio, na direção do inimigo. Antes de o vidro espatifar-se no chão, seus braços, velozes como o bote de uma serpente, atacaram. Os dedos da mão direita golpearam a traquéia do sujeito, deixando-o imediatamente fora de combate; a mão esquerda agarrou o braço direito que pegava a algema e, no tempo que o segundo policial levou para terminar de sacar a arma e puxar o gatilho, já havia recuado trazendo o corpo inerte para junto de si, usando-o como escudo, girando o próprio corpo de modo a encaixar-se no do oficial e escorá-lo, como se este o encoxasse por trás, bem no momento do choque da bala contra o kevlar sob a jaqueta. Ato contínuo, sem interromper seu movimento giratório, levou a mão direita à perna do homem às suas costas, puxando e destravando sua pistola a um só movimento; completou o giro, ajoelhando-se e atirando contra o soldado remanescente antes do mesmo ter tempo de puxar o gatilho de novo, enquanto o primeiro despencava bem ao seu lado. Dois disparos precisos, da maneira como fora ensinado a enfrentar homens de colete. Um na cabeça. Um na virilha.

Ficou de pé. A respiração, não mais tão controlada assim; as mãos, já começando a tremer novamente; os olhos piscando outra vez, a intervalos cada vez menores. Realidade e alucinação mesclavam-se em sua mente, numa dança furiosa que o fez apertar a cabeça com força, usando as duas mãos, a arma ainda na direita. Ao seu redor, o pânico da matança já dava seus clássicos sinais, arrebatando instantaneamente todos que nunca precisaram praticá-la.

Como se arrancado de um devaneio, Thom correu, passando pelo policial baleado e apanhando sua arma, imprimindo a máxima velocidade que suas pernas velhas agüentavam, fugindo desesperadamente da violência que, por tantos anos reprimida, rompera o lacre e vinha uivando inundar sua vida novamente.

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