terça-feira, 26 de agosto de 2008

*Metamorfose Colossal - CEBolso nº 1

O conto a seguir é da autoria de Cristiano Imada, e constitui, junto de Aurora (post anterior) a primeira edição da Contos Extraordinários Bolso.

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Metamorfose Colossal
Cristiano Imada

- Acorda.

O inesperado tapa joga sua cabeça para a direita em um forte solavanco. Mas não é o susto do tapa, e sim a latência de sua face que faz com que seus pensamentos voltem a surgir, indo e vindo como ondas, confusos e ardentes, tal qual suas memórias. Lentamente você abre o olho, as pálpebras pesam a levantar e as pupilas focam as imagens com dificuldade. Você não sabe onde está, tudo o que pode ver é a silhueta de seu carrasco logo à frente, além dele, escuridão. A única fonte de luz está logo acima de sua cabeça, ofuscando-lhe.

Os sentidos retornam pouco a pouco, embora isso não seja tão bom quanto gostaria. Cada centímetro de seu corpo urra de dor: o tato denuncia ossos quebrados, unhas arrancadas, dentes perdidos, o cu rasgado, milhares de cortes pela pele e queimaduras nos raros locais incólumes. Todas essas horríveis sensações mesclam-se e torturam sua alma, quase arrancado sua humanidade. O olfato sussurra uma mensagem sangrenta, suada e podre à sua narina. A visão borra. Os pensamentos voltam a se dissipar, a ficarem intangíveis... Sua mente lhe diz que “adormecer é melhor”...

- NÃO DESMAIE. NÃO AGORA, SEU INFELIZ.

Um movimento brusco, e então você sente como se tivesse levado um tiro no estômago. O ar fica denso, árduo de ser tragado. O soco não passou de uma cortesia, que fez com que sua atenção se desviasse um pouco do resto de seu corpo.

- Vou te perguntar MAIS uma vez: quem é a porra da sua conexão??? Me responde, filho da puta!

Há quanto tempo está ali? Uma semana parece razoável, mas não é possível. Uma hora? Muito pouco. Pense racionalmente... Tente lembrar-se... Antes de ser algemado naquela cadeira, onde você estava? Em um carro... Encapuzado... Você ouviu a voz de duas pessoas na frente... Estava sentando entre duas pessoas atrás... E antes disso? Pense... Pense... Em casa! Dormindo... Por que te pegaram? O que você fez? Quem é você?

- ... sabe? Diga! Quais as suas provas? Como as consegui...

Quem é você? Quem é você? Quem é você? Quem é você? Quem é você? Quem é você? Quem é você? Quem é você? Quem é você? Quem é você? Quem é você? Quem é você? Quem é você? Quem é você? Quem é você? Quem é você? Quem é você? Quem é você?

O que você fez?

- Seu merda! Você não sabe com quem está lidan...

-X-

A porta abre. Você corre eufórico: ele chegou. Seu pai entra tropeçando em casa e empurra a porta, que se fecha com um estrondo. Ele cambaleia até o sofá e se joga sobre ele. Você se aproxima cauteloso, e o admira: um guerreiro cansado após uma batalha colossal. As rugas são como cicatrizes de guerra, que adornam seu olhar austero, olhar que torna qualquer conversa desnecessária, pois suplanta qualquer palavra. Você se aproxima mais. Ele ronca feito um leão, um ronco digno de seu porte. Seu bafo é amargo e horripilante, como deve ser o bafo dos dragões.

Ele vira a cabeça e abre os olhos, então o encara. Temeroso por ter despertado o gigante, você salta para trás.

- Cresça... Ic... E se torne um grande ho... Ic... mem... Seja honesto e defenda seus Ic... ideais... Não tenha medo de Ic... ninguém.... Não me decepcione...

Então ele se virou e adormeceu novamente.

-X-

- Passa a bolaaaaaa! – Você grita a plenos pulmões, e para sua felicidade é atendido: a bola vem rasante e precisa para seus pés.

- Irmão! – Seu irmão grita lá de sua casa. Você está com a bola nos pés... o segundo de decisão se prolonga... pode ver o que ele quer depois... o suor escorre pelo seu rosto... marcar o gol agora... O Betinho aproveita sua indecisão e toma a bola, dribla um, dribla dois, dá um chapéu no goleiro e marca mais um pro time adversário.

- PÔÔÔÔÔÔ! – Você sai da rua berrando, atravessa o quintal, e chega à porta de sua casa, onde seu irmão está parado, cabisbaixo e arqueado com as mãos nos joelhos.

Há algo de estranho nele... ele está... chorando?

- O pai... O pai... O pai foi... – Ele faz uma pausa, respira fundo e limpa a coriza de seu nariz – O pai foi morto... – Ele ajoelha-se, como que pedindo desculpas.

- Morto? Ele foi pro céu? Tá com a mamãe? A gente não vai mais ver ele? – Você indaga com os olhos marejados – Porque eles nos abandonaram?

-X-

Você está na casa dos seus tios, ansioso para completar logo seus doze anos. Olha o calendário preso na parede: faltam 5 dias para ganhar um presente. Então você volta para a sala e senta-se em frente à tv. Seu tio logo sairá do banheiro para vocês continuarem a assistir o filme. A imagem está congelada na cena em que o soldado norte-americano levanta a bandeira de seu país. Você admira a bravura daquele soldado. Ele te lembra alguém... Patriota, incorruptível, perseverante, colossal, alguém disposto a dar seu sangue por uma causa maior. Quem era ele mesmo?

-X-

Você está do lado de fora de seu quarto, emburrado. Já tem 13 anos, mas como divide o quarto com seu irmão, tem que seguir as regras que ele impôs, e que você não agüenta mais - uma delas é não poder ficar no quarto todos os dias das 15 às 17 horas.

Debaixo da porta começa a sair aquele cheiro novamente, um cheiro agradável até. Quando perguntou ao seu irmão o que era, ele lhe disse que era incenso e em seguida mandou calar a boca, assim como também o relembrou que não era para contar aos tios que todos os dias os amigos dele iam lá e ficavam trancados no quarto por duas horas ouvindo rock.

Então uma música bonita e misteriosa começou a entoar e preencher o ar, te tranqüilizando e te acalmando...

And it's whispered that soon, if we all called the tune
Then the piper will lead us to reason
And a new day will dawn for those who stand long
And the forest will echo with laughter

-X-

Dezesseis anos e alguns meses de idade e você ainda não arranjou uma namorada. Agora que a escola inteira sabe que seu irmão está preso há quase dois anos por tráfico de drogas, suas chances acabaram por se reduzir a quase zero. Você joga sua mochila no canto do quarto, aliás, o quarto é a única coisa boa que seu irmão lhe deixou.

- Filho... teve uma rebelião... – Você se vira. Seu tio está na porta de seu quarto. – Seu irmão... como posso te dizer?... Ele...

Você não precisou que ele terminasse a frase para começar a chorar.

If there's a bustle in your hedgerow
Don't be alarmed now
It's just the spring clean for the May Queen
Yes there are two paths you can go by
but in the long run
There's still time to change the road you're on
And it makes me wonder…

-X-

As imagens passam rápido, como num filme acelerado. O ingresso no exército, o treinamento exaustivo, a glória de servir ao país, e, então, a decepção de descobrir que “servir ao país” resumia-se a carpir mato. A descoberta da polícia incorruptível: o BOPE - a tentativa de ingressar nela começando pela polícia militar, e a nova decepção: a corrupção da polícia. Sem conseguir completar os dois anos necessários como PM para ingressar no BOPE, você torna-se detetive particular. Outra decepção: seus casos praticamente se resumem a maridos ou esposas desconfiados da integridade de seus parceiros. Algo lhe diz: “A vida passa rápido depois dos 21”. De fato, você mal se lembra de quando começou a investigar políticos corruptos por conta própria...

-X-

Um toque de telefone.

Você acorda. O seu carrasco está falando algo com alguém no celular. A dor é algo distante agora, há serenidade e silêncio em seu espírito: uma metamorfose está quase completa, um gigante está para nascer.

O torturador coloca o celular em seu ouvido direito, e vira a face para o outro lado, com repugnância do cheiro de merda e sangue que seu corpo exala. Uma voz começa a ser ouvida e você a reconhece: é um daqueles que estava investigando.

- Eu ofereci mais do que você merecia...

Você estava investigando um caso de desvio de dinheiro para uma universidade federal. Até tinha conseguido apoio do reitor e outros membros da instituição que queriam o fim da picaretagem.

- Você poderia pegar esse dinheiro, sumir e começar outra vida...

Todos aqueles que te ajudaram acabaram mortos. Frustrado e sem pistas, você resolveu passar para uma tática ainda mais ousada.

- Sorte que sua família inteira já morreu...

Você enviou cartas para as residências dos suspeitos dizendo que tinha provas contra eles, pediu uma quantia exorbitante em dinheiro, e disse que caso fosse morto ou suas exigências não fossem cumpridas, uma pessoa de confiança enviaria cópias das provas para diversos jornalistas, juízes e qualquer outra pessoa que pudesse complicar suas vidas. Porém, eles foram mais espertos: apenas o capturaram, não o mataram ainda.

- ... ou você aceita sua vida como pagamento, ou você e seu amiguinho morrem juntos...

É claro, você não queria dinheiro algum, não possuía ninguém de confiança disposto a arriscar sua vida, e muito menos alguma prova. Tudo o que possuía eram suspeitos, e finalmente um deles revelou-se o verdadeiro autor do crime.

O crápula continua a falar suas besteiras no celular. O carrasco ainda está com a face voltada para o outro lado, tentando respirar um ar menos podre. Você percebe que preso no que sobrou de seu ânus há uma farpa que se soltou da clava que fora utilizada na tortura. Uma vez que as mãos estão algemadas para trás, não é difícil alcançar a farpa com os dedos. Puxá-la e desprendê-la da carne putrefata que agora está entre as nádegas é doloroso, porém agora a dor não passa de uma sensação trivial. Você a introduz no fecho da algema e imita um tossido para disfarçar seu clique.

Você agarra velozmente o braço do torturador e o gira, quebrando-o. Antes que ele possa emitir qualquer som, você puxa seu braço, e agarra sua traquéia, esmagando-a com ódio e vingança. Após alguns segundos segurando-a, ele pára de se debater e morre por sufocamento.

Você desamarra seus pés calmamente e levanta-se, ignorando a dor. Consegue enxergar melhor agora: há uma porta imensa entreaberta mais à frente. Você está em um imenso galpão. Aproxima-se da porta lentamente e espia o lado de fora. Há um homem sentado mais à frente, virado de costas, fumando um cigarro. Uma música toca baixo; provavelmente o homem a está escutando. Você pega um machado encostado na parede do lado de dentro, abre a porta vagarosamente, aproxima-se por trás dele cautelosamente e o degola.

Em seguida olha ao redor. A brisa bate em seu corpo, lembrando-lhe que está nu. “Os outros dois devem ter ido embora, esse deve ser só o motorista do torturador”, você conclui. Revirando o corpo degolado, acha as chaves do carro estacionado próximo à parede do galpão; é do carro que vem o som. A música é familiar: lembra as músicas que seu irmão ouvia enquanto fumava maconha trancado no quarto. Você se deixa embalar por um momento pelos riffs, que vibram na mesma intensidade da sua alma: uma canção de ódio.

Você entra no dodge e liga a ignição. O motor ronca feito o rugido de um dragão, os pneus urram como leões. Você cruza a porteira da fazenda levantando poeira e entra na BR, acelerando a toda, no ritmo da música.

- Eu vou matar todos vocês. – Jura para si mesmo.

I AM IROONN MAAAANNNN!!!!!!!! – a música se torna uma canção de guerra.

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E aí, o que achou do conto? COMENTE!

Em breve: a 5ª edição!

4 comentários:

Anônimo disse...

O cara foge com uma farpa que tinha no CU!! hiuhaiuha sensacional =)

Unknown disse...

Cris, parabéns!
desculpa a ignorancia mas essa 'trilha sonora' é do led?hehe
besos!

Anônimo disse...

Muito obrigado pelos elogios!
Sim, há uma referência para o "stairway to heaven", do led zeppelin, e para o "iron man", do black sabbath, no final.

Anônimo disse...

PEAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA

NAO PODIA ESPERAR ALGO MELHOR DE VC KRAAAAAAAAAAA

SENSACIONAL PEA...!