sábado, 29 de novembro de 2008

Palhinha do 8º conto

Faz um bom tempo que isso não acontece... Mas nada como a própria história para mostrar do que se trata o conto. Aqui vai um trecho do começo da 8ª edição.

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Balas Perdidas
Fumaça, jipes e torniquetes

CENA 1


Suas asas, seu porte, a angulação perfeita de seu corpo esguio, numa subida graciosa, escalando os degraus de ventos tão abundantes e frescos àquela altura, rumando para as nuvens, para o branco leve - interrompida pela bala torpe e improvável, atravessando seu peito e costas, desviando-lhe do vôo meticulosamente planejado. Seu gracejo se acaba num segundo, seu corpo contorce-se numa queda livre e desastrada, suas penas brancas dançando confusamente ao léu, até que atinge o teto da casa, no centro do caos humano, brutal e mortífero. O baque no cimento perde-se em meio a gritos e tiros e passa despercebido para os homens logo abaixo.

- Puta merda! PUTA MERDA! FUDEU!

- Cala a boca, Solano, PORRA! - grita o sargento Lopez.

São cinco deles. Três soldados rasos, Solano, Jordão e Barreto, um cabo, Silva, e o sargento Lopez. Tudo dera errado, incrivelmente errado.

- Merda! Eu vou matar aquele filho da puta! Nos mandar pra cá, pra morte certa! - continua Lopez, dizendo em outras palavras o que o soldado que mandara calar a boca acabara de falar.

Estavam no meio de uma situação delicada: os valentes soldados de um país longínquo tentando impor a paz por meio da violência, num território pobre e desolado. A guerra civil era uma realidade; as dezenas de clãs locais tentavam tomar o poder que um governo em ruínas não exercia, e no meio do caminho inocentes eram trucidados, pela violência ou pela fome. Ali, na capital, qualquer fagulha tornava-se uma labareda contundente, que deitava facilmente dezenas de vítimas no chão banhado de sangue, a maioria delas inocentes sem ter para onde correr. O exército chegara há meses, e sufocava lentamente enquanto os soldados tombavam sem conseguir livrar a cidade de seus “elementos nocivos”.

- Até agora não sabemos se eles realmente nos mandaram pra cá, sarja - disse Silva.

Estavam refugiados num cubículo de cimento que, a notar pelos colchões e trapos sujos espalhados pelo chão, alguns há pouco chamavam de lar. Uma porta de madeira estropiada e uma janela selada com tábuas eram o que completava a decoração primitiva do quadrado de concreto. Há quinze segundos entraram ali. Não tiveram que esperar muito por companhia.

A porta, à direita dos homens, despedaçou-se de vez com o impacto de novas balas, os pedaços entrecortados de madeira voando e espatifando-se na parede do outro lado. Os cinco, agachados rentes a uma das paredes, com os rifles em punho, apenas esperavam o momento certo.

- Cala a boca, Silva. Aí vem eles - resmungou o sargento.

Os insurgentes não tinham uniformes, proteção ou treinamento adequado; usavam roupas comuns e ficavam muito mais à vontade com enxadas ou martelos do que com armas. Que, a propósito, eram em grande parte velharias, financiadas com as mixarias adquiridas nas pilhagens locais, compradas em remessas de grande quantidade; sobras de outras guerras negociadas por valores baixos. De fato, quantidade era a única vantagem dos clãs locais. Mas não de armas, e sim de homens, de mártires, de suicidas.

O primeiro deles entrou pulando, mas virado para o lado errado; foi jogado para frente no ar e caiu de boca no chão, com mais de vinte balas cravejadas em toda a extensão traseira de seu corpo. Os homens seguintes entraram mirando o lado certo, embora atirassem a esmo. O ambiente foi inundado por uma sinfonia sangrenta e frenética, de dentes cerrados e olhos incandescentes. Caíram conforme entraram, uns sobre os outros, numa carnificina incontrolável. A música só cessou quando o último da fila caiu, metade de seu corpo além da soleira da porta. Os cinco soldados olharam para os lados, checando os companheiros, mal acreditando na pilha de mais de vinte cadáveres amontoados na sua frente.

- CARALHO! Tá todo mundo bem? - perguntou Barreto, o mais próximo da parede rente à porta, e, portanto, o mais protegido - Tô ileso.

- Dois tiros na perna - disse Jordão ao seu lado, segurando o rifle apontado para a porta com uma mão e a perna ferida com a outra.

- Tô tranqüilo - falou Solano, na outra ponta da parede.

- Os desgraçados acertaram meu braço esquer-- Argh! - resmungou o sargento Lopez, puxando o tecido da camisa camuflada pelo buraco feito pela bala, cutucando sem querer o ferimento - Barreto, você e Solano empilhem esses corpos na porta, para cobertura. Com ela aberta somos presa fácil. Vão!

Enquanto os dois, ainda agachados, aproximavam-se dos cadáveres inimigos, começando a empilhá-los, Jordão cutucou Silva, ao seu lado esquerdo. O cabo não se mexeu. Cutucou-o de novo, mais forte, e dessa vez o colega tombou para o lado, inerte.

- Silva?

O tiroteio recomeçou. Assim que os insurgentes viram os soldados tentando empilhar os corpos, barrando a entrada da casa, voltaram a atirar em peso, embora não se aproximassem muito. Barreto e Solano continuaram, apenas tomando mais cuidado, imaginando a infinidade de gente lá fora querendo arrancar-lhes o couro. Cada um pegava numa ponta do corpo, bem rente à parede para que não se tornassem alvos fáceis, e levantavam-no, jogando-o em cima dos outros.

- Vamos, lá, Barreto, vamos fechar essa bosta! - já haviam tampado mais da metade da altura necessária quando uma bala, vinda na diagonal, acertou em cheio a mão esquerda de Solano. Quatro dedos voaram para o chão, encharcados de sangue. Apenas o dedão ficou no lugar. Ele pulou para trás, segurando o pulso da mão ferida com a boa - MEU DEUS! MINHA MÃO!

- Ah, merda! - disse Lopez - Barreto, não vai ter jeito de fazer essa barricada se esses putos não pararem de atirar! Joga uma granada!

- Mas, sargento, e se tiverem inocentes perto? Não devíamos usar elas só em caso de extrema urg--

- Seu bosta! O que cê acha que é isso? Joga, infeliz!

Barreto pegou uma das granadas presas na cintura, soltou o pino e jogou-a por cima dos cadáveres. Os tiros cessaram e eles ouviram os gritos desesperados, na língua local, e, em seguida a explosão.

- Agora vamos acabar com isso - retomou Lopez, soltando o rifle no chão, apoiando-se no braço bom para levantar e pegando o corpo mais próximo - Vamos, Barreto! Tá esperando o quê? Um convite? Ajuda aqui, porra.

Barreto, que continuava agachado ao lado da porta, ajudou o sargento a levantar o corpo. Mesmo com Lopez podendo utilizar uma só mão, eles logo acabaram a barricada, selando a entrada. O calor, que já era excessivo, aumentou mais ainda. Também ficou escuro, mas a luz que entrava pelas frestas das tábuas na janela era o suficiente para iluminar o ambiente. Barreto, agora o único sem ferimentos, começou a arrumar o resto dos cadáveres atrás da pilha, de forma a fortalecê-la. Lopez voltou para a parede e sentou-se ao lado de Silva e Jordão; este desviara sua atenção para Solano, que ainda esperneava do outro lado da pequena casa. O sargento pegou o rifle e pousou-o sobre o colo. Então colocou um dedo na parte superior do pescoço de Silva. Depois, aproximou a orelha de seu nariz. Não sentiu nada.

- O Silva morreu - disse, pesaroso.

- Solano, engole esse choro, homem! Vem aqui, vou fazer um torniquete no teu pulso pra estancar o sangramento - gritou Jordão após as palavras de Lopez, amortecendo seu severo impacto.

Solano levantou-se e em dois passos chegou ao lado do colega, que arrancou um pedaço da camiseta que usava por baixo do uniforme e começou a amarrar em volta de seu pulso.

- Meu Deus... - disse Solano, fazendo careta - Olha a minha mão... Que estrago - Então olhou para o corpo de Silva, para o braço ferido do sargento e para a perna alvejada de Jordão - Não tô querendo ser pessimista, pessoal, mas acho que tamos mortos...

- Cala a boca, Jordão. A gente só tá morto quando tá morto - respondeu Lopez.

Barreto mal terminou de arrumar os corpos, os tiros recomeçaram, agora descompassadamente, acertando toda a extensão da casa.

- Meu Deus - disse ele - por que mandaram a gente pra cá? Estamos no meio do inferno... O rádio pifou de vez? - perguntou, olhando para o sargento, que puxou o aparelho preso na cintura de Silva. Fora alvejado e estava quebrado. Lopez apertou o botão para ver se obtinha alguma resposta, mas a caixinha preta em sua mão não emitiu nenhum som, nada.

- Merda ! - gritou quando jogou o rádio na parede, quebrando-o de vez - GRANDE PEDAÇO DE MERDA DO CARALHO, PORRA!

- Eu não descreveria melhor, senhor - disse Jordão com um meio sorriso na boca.

- E eu não continuaria rindo por muito tempo, Jordão - disse Solano, olhando a janela logo acima deles. Estavam encostados na parede, sob ela - Temos sorte que esses filhos da puta são burros... Essas madeiras não guentariam nem dois segundos se--

Uma rajada de tiros acertou as tábuas, deixando três buracos alinhados. Lopez alcançou Solano pelo pescoço, esbugalhou os olhos e disse, raivosamente:

- Solano, seu maldito desgraçado, ou você cala essa boca imunda ou eu mesmo arranco fora os outros dedos que sobraram, me ouviu? - então o soltou, empurrou-se para trás forçando as pernas no chão, até encostar as costas na parede, levantou o joelho direito e apoiou o rifle ali em cima, mirando a janela - Barreto, recolhe essas armas que tão pelo chão e deixa aqui ao alcance da nossa mão; daqui a pouco acaba a munição. E fica ali, ó, como eu - disse, apontando a parede à sua frente, do outro lado - Nenhum desses filhos da puta vai brincar com a gente. Apareceu, toma chumbo

Barreto rapidamente recolheu o que tinha e jogou-as no chão, distribuindo ao alcance de todos. Jordão terminou o torniquete no pulso de Solano e pegou o rifle e a munição de Silva.

- Certo. Vocês dois cuidam da porta. Essa barricada não vai durar pra sempre - ordenou o sargento.

- Meu Deus - disse Jordão, olhando sua coxa e ignorando as palavras do superior - acho que me acertaram de jeito.

Barreto olhou mais atentamente a perna direita de Jordão, forçando os olhos para enxergar melhor à meia-luz. Só então viu a enorme poça de sangue que a circundava.

- Puta merda! - exclamou ele - Quer que eu dê uma olhada?

- Pra quê, Barreto? Você não entende porra nenhuma disso. Deve ter acertado uma artéria... Olha, o único jeito de eu, e provavelmente vocês, sobrevivermos a essa merda é se vierem nos resgatar rápido, o que acho improvável. Que que cê acha, sarja?

- Todo mundo aqui sabe como funciona, Jordão. Ninguém fica pra trás. Eles virão, cedo ou tarde. Mas virão - concluiu Lopez.

As palavras do sargento foram as últimas ditas em uma pausa de longos minutos. Eles sabiam daquilo. Viriam resgatá-los, de alguma forma. Mas conseguiriam chegar a tempo? Por instantes aquilo ocupou-lhes a mente, num sofrimento latente de imaginar tudo o que poderiam fazer, se saíssem dali com vida.

Então, sem mais nem menos, a cabeça de Jordão despencou sobre o peito.

- Jordão! - gritou Barreto, desesperado, aproximando-se do colega. Solano, ao seu lado, virou-se assustado e levantou sua cabeça. Os dois analisaram-no e em poucos segundos constataram: estava morto. Perdera muito sangue.

- Merda, MERDA! - exclamou Barreto, voltando para a parede - Silva, agora Solano... Daqui a pouco seremos nó--

- Sem choro, soldado! - interrompeu Lopez - Agora somos só nós três. Nós ou eles lá fora. Quando tudo acabar, você vai ter tempo de chorar a morte dos dois.

Barreto engoliu o pesar. Continuaram quietos por mais um minuto. Foi o quanto Solano conseguiu segurar-se.

- Puta merda - disse ele - Tô impressionado com esses idiotas. Quero dizer, são só táb--

Lopez abaixou a arma e disparou. Uma bala passou zunindo pela cabeça de Solano.

- CARALHO, SARJA! - assustou-se ele.

- Soldado, você tem certeza de que não quer calar a boca? - disse o sargento, agora mirando o rifle no meio de seus olhos.


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